1 Ricardo Basbaum
ADVERTÊNCIA: Atenção para esta distinção de vocabulário:
(1) Quando um curador é curador em tempo integral, nós o chamaremos de curador – curador; quando o curador questiona a natureza e a função de seu papel como cur ador, escreveremos ‘curador – etc’ (de modo que poderemos imaginar diversas categorias, tais como curador – escritor, curador – diretor, curador – artista, curador – produtor, curador – agenciador, curador – engenheiro, curador – doutor, etc);
(2) Quando um artista é art ista em tempo integral, nós o chamaremos de ‘artista – artista’; quando o artista questiona a natureza e a função de seu papel como artista, escreveremos ‘artista – etc’ (de modo que poderemos imaginar diversas categorias: artista – curador, artista – escritor, artista – ativista, artista – produtor, artista – agenciador, artista – teórico, artista – terapeuta, artista – professor, artista – químico, etc);
O enunciado acima pressupõe que o ‘curador – curador’ (ou mesmo o ‘curador – artista’) trabalha de modo diferente do ‘artista – curador’.É em torno deste ponto que gostaria de comentar a afirmação proposta: “A próxima Documenta deveria ser curada por um artista”.
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Amo os artistas – etc.
Talvez por que me considere um deles. Artistas – etc não se moldam facilmente em categori as e tampouco são facilmente embalados para seguir viagens pelo mundo, devido, na maioria das vezes, a comprometimentos diversos que revelam não apenas uma agenda cheia mas sobretudo fortes ligações com os circuitos locais em que estão inseridos. Vejo o ‘artista – etc’ como um desenvolvimento e extensão do ‘artista – multimídia’ que emergiu em meados dos anos 1970, combinando o ‘artista – intermídia’ fluxus com o ‘artista – conceitual’ – hoje, a maioria dos artistas (digo, aqueles interessantes…) poderia ser considerada como ‘artistas – multimídia’, embora, por ‘razões de discurso’, estes sejam referidos somente como ‘artistas’ pela mídia e literatura especializadas. ‘Artista’ é um termo cujo sentido se sobre – compõe em múltiplas camadas (o mesmo se passa com ‘arte’ e demais palavras relacionadas, tais como ‘pintura’, ‘desenho’, ‘objeto’), isto é, ainda que seja escrito sempre da mesma maneira, possui diversos significados ao mesmo tempo. Sua multiplicidade, entretanto, é invariavelmente reduzida apenas a um sentido dominante e único (com a óbvia colaboração de uma maioria de leitores conformados e conformistas). Logo, é sempre necessário operar distinções de vocabulário. O ‘artista – etc’ traz ainda para o primeiro plano conexões entre arte&vida (o ‘an – artista’ de Kaprow) e arte&comunidades, abrindo caminho para a rica e curiosa mistura entre singularidade e acaso, diferenças culturais e sociais, e o pensamento. Se a próxima Documenta for curada por um artista, devemos esperar encontrar um artista – etc trabalhando como artista – curador.
Quando artistas realizam curadorias, não podem evitar a combinação de suas investigações artísticas com o projeto curatorial proposto: para mim, esta é sua força e singularidade particulares, quando em tal engajamento. O evento terá a oportunidade de mostrar – se claramente estruturado em rede de nós próximos, aumentando a circulação de energia ‘afetiva’ e ‘sensorial’ – um fluxo que o campo da arte tem procurado administrar em termos de sua própria economia e maleabilidade.
Se um artista – curado r pretender dirigir/curar/planejar o assim chamado ‘maior evento de arte contemporânea do circuito de arte do Ocidente’, ele ou ela certamente terá que incluir, entre os diversos tipos de artistas (com forte simpatia pelos artistas – etc), pensadores contemporâneos de variadas disciplinas (para os críticos de arte: “coloque – se como um pensador – sensorial; caso contrário, você não existe”) – todo um conjunto de não – artistas, tais como pessoas trabalhando em qualquer ocupação ou campo de pesquisa, em qualquer lugar do mundo. Essas pessoas não estariam produzindo arte, mas envolvidas com os artistas e seus trabalhos em um fórum permanente para produção de pensamento em tempo real (por bem mais que cem dias), construindo em conjunto atos sensoriais provocativos (SP ACTs – Sensorial Provocative Acts ). Aqui, suporte digital seria fundamental. Com tal dinâmica, quem se importará com o ‘público’? O evento não estaria com as portas abertas, tendo optado por voltar – se para ‘consumo interno’ – este autofechamento deve ser compreendido como o reconhecimento da falência da ‘esfera pública’ e sua transição para algum tipo de arena pós – pública (a linha diagramática amizade – coletivo – multidão – comunidade), gesto a ser assumido como provocação necessária com o objetivo de buscar nov as formas de relacionamento com a audiência. Queremos que os visitantes, que efetivamente comparecerem, sejam sujeitos de um processo de transformação durante o (e depois do) evento, desenvolvendo algum tipo de responsabilidade e compromisso em relação a ele. Como proposta final, a Documenta deveria deixar a cidade de Kassel e iniciar uma turnê mundial, passando seis meses em algumas cidades dentro dos cinco continentes, sendo coordenada por equipes locais de artistas – etc. Quando enfim retornar novamente ao seu lugar inicial (voltará para um local denominado ‘origem’?), haverá material suficiente para uma série de filmes – documentários acerca do papel a ser desempenhado pela arte contemporânea no mundo mutante da atualidade. Para serem apreciados na segurança do lar, através da TV, pelas famílias do planeta.
Amo os artistas – etc. Talvez porque me considere um deles, e não é correto odiar a mim mesmo.
1 “I love etc – artists” foi publicado originalmente em inglês, como parte do projeto The next Documenta should b e curated by an artist , posteriormente transformado em livro (Frankfurt, Revolver Books, 2004). Sob curadoria e organização de Jens Hoffmann, 31 artistas foram convidados a comentar a proposição sugerida pelo curador, de modo a investigar as relações entre práticas artísticas e curatoriais. A versão em português aqui apresentada foi realizada pelo autor para esta edição. Original disponível on – line em http://www.e – flux.com